No MushVerse, utilizamos cookies próprios e de terceiros para melhorar a experiência em nosso site, analisando o tráfego e aprimorando conteúdos. Os cookies técnicos são necessários para o funcionamento básico e estão sempre ativos. Para mais informações, você pode consultar nossa política de privacidade.

Fungos radiotróficos: organismos que transformam radiação em vida

Nos cantos mais inóspitos do nosso planeta, onde a radiação ionizante converte o ambiente em um páramo letal para a maioria das formas de vida conhecidas, existe um grupo extraordinário de organismos que não apenas consegue sobreviver, mas prospera de maneira surpreendente.

Os fungos radiotróficos representam uma das descobertas mais fascinantes da biologia moderna, desafiando nossas concepções tradicionais sobre os limites da vida e abrindo novas perspectivas sobre a sobrevivência em condições extremas.

Adentre no mundo dos fungos radiotróficos, uma fronteira promissora entre biologia, astrobiologia e tecnologia.

Cryptococcus neoformans
Cryptococcus neoformans (📷Enrique López Garre / Pixabay)

O que são os fungos radiotróficos?

Os fungos radiotróficos constituem um grupo singular de microrganismos que possuem a extraordinária capacidade de utilizar a radiação ionizante como fonte de energia para seu crescimento e metabolismo. Esta característica os distingue fundamentalmente de outros organismos, já que podem aproveitar formas de energia que resultam letais para a grande maioria dos seres vivos.

Para compreender melhor este fenômeno, é importante estabelecer uma analogia clara: assim como as plantas utilizam a energia solar através da fotossíntese para produzir açúcares e crescer, estes fungos desenvolveram mecanismos que lhes permitem capturar e converter a energia da radiação gama, beta e outras formas de radiação ionizante em energia utilizável para seus processos vitais.

No entanto, é crucial esclarecer que estes organismos não "consomem" ou "comem" radiação no sentido literal, mas sim evoluíram sofisticados sistemas bioquímicos para transformar esta energia em formas aproveitáveis.

Resistência vs. Radiotrofismo

É fundamental distinguir entre os fungos verdadeiramente radiotróficos e aqueles que simplesmente mostram resistência à radiação. Enquanto muitos microrganismos podem desenvolver tolerância a ambientes radioativos mediante mecanismos de reparação do DNA e outros sistemas de proteção (como as bactérias Deinococcus radiodurans ou Thermococcus gammatolerans), os fungos radiotróficos vão um passo além: não apenas resistem à radiação, mas a utilizam ativamente como fonte de energia.

Esta distinção é crucial para compreender a singularidade destes organismos e seu potencial de aplicação em diversas áreas.


O papel da melanina nos fungos

O mecanismo exato mediante o qual estes fungos conseguem esta façanha ainda não é completamente compreendido, mas a investigação científica identificou um componente chave neste processo: a melanina. Este pigmento escuro, conhecido principalmente por seu papel na pigmentação da pele humana, parece desempenhar um papel fundamental na capacidade radiotrófica destes organismos.

A hipótese mais aceita sugere que a melanina atua como uma espécie de "antena molecular" que pode capturar a radiação ionizante e facilitar sua conversão em energia química utilizável. A evidência experimental é contundente: enquanto os fungos melanizados experimentam este crescimento acelerado sob radiação, as cepas mutantes albinas sem melanina não mostram este fenômeno, confirmando o papel central deste pigmento no processo radiotrófico.

Cladosporium cladosporioides é um fungo que pode produzir melanina.
Cladosporium cladosporioides é um fungo que se considera melanizado. Fotografia da Escola de Saúde Pública Bloomberg da Universidade Johns Hopkins
Os estudos demonstraram que fungos como Cryptococcus neoformans com altas concentrações de melanina mostram um crescimento acelerado de até três vezes sua velocidade normal quando expostos a níveis de radiação gama aproximadamente 500 vezes superiores aos ambientais.

Como atua a melanina nos fungos?

Do ponto de vista bioquímico, o processo de radiossíntese em fungos melanizados implica uma complexa interação entre a melanina e os elétrons liberados pela radiação ionizante. A melanina, um polímero heterogêneo com estruturas aromáticas conjugadas, atua como um semicondutor biológico, capaz de facilitar o transporte de elétrons através de sua rede molecular.

Quando os fungos são expostos à radiação ionizante (principalmente gama), esta energia excita as moléculas de melanina, alterando suas propriedades eletrônicas. Estudos espectroscópicos mostraram que, após a exposição à radiação, a melanina incrementa sua capacidade de reduzir agentes como o ferricianeto, o que indica um aumento na atividade redox do polímero. Este efeito sugere que a melanina funciona como um sistema de captura e transferência de elétrons, parecido ao papel que desempenham os centros de clorofila na fotossíntese vegetal.

Além disso, observou-se que as mudanças estruturais induzidas pela radiação incrementam a densidade de estados eletrônicos acessíveis na melanina, facilitando processos de doação e aceitação de elétrons em rotas metabólicas associadas ao crescimento celular. Este fenômeno poderia estar associado à geração de ATP via rotas fermentativas ou respiratórias não convencionais, embora os mecanismos metabólicos exatos ainda não tenham sido caracterizados completamente.

Outra hipótese complementar sugere que a melanina atua como um antioxidante dinâmico, neutralizando espécies reativas de oxigênio (ROS) geradas pela radiação. Esta ação protetora não apenas previne o dano celular, mas poderia formar parte do sistema geral de captação energética, mediante reações acopladas à geração de potenciais eletroquímicos aproveitáveis pela célula.


Descoberta dos fungos radiotróficos

Fungos em Chernobyl

A primeira evidência de fungos radiotróficos surgiu na zona de exclusão de Chernobyl, na área de 30 quilômetros de raio ao redor da usina nuclear que sofreu o acidente. Em 1991, apenas cinco anos depois do acidente, observou-se um mofo negro crescendo dentro do reator número 4, na zona de máxima contaminação. Esta descoberta inicial revelou um fenômeno surpreendente: não só havia vida no lugar mais radioativo do planeta, mas parecia estar prosperando.

As investigações posteriores documentaram aproximadamente 200 espécies de 98 gêneros de fungos na zona de Chernobyl, a maioria de pigmentação negra.

O ano de 2007 marcou um ponto de inflexão na compreensão destes organismos. Uma equipe liderada por Ekaterina Dadachova no Albert Einstein College of Medicine publicou um estudo que mudou radicalmente a perspectiva científica. Demonstraram experimentalmente que fungos melanizados como Cladosporium sphaerospermum, Cryptococcus neoformans e Wangiella dermatitidis não apenas incrementavam sua biomassa sob radiação intensa, mas também assimilavam mais carbono.

Expansão ao espaço

O interesse científico se estendeu ao âmbito espacial quando em 2016, uma equipe do Jet Propulsion Laboratory (JPL) da NASA, liderada por Kasthuri Venkateswaran, levou oito espécies de fungos coletadas em Chernobyl à Estação Espacial Internacional para estudar sua resposta à microgravidade e radiação espacial.

Embora não tenha sido publicada uma lista completa das oito espécies, sabe-se que foram selecionadas por sua capacidade para sobreviver em ambientes altamente radioativos e por seu potencial para produzir compostos com aplicações farmacêuticas e agrícolas. Os pesquisadores buscavam determinar se as condições extremas do espaço poderiam induzir estes fungos a produzir novos metabólitos secundários com propriedades bioativas.

Sabe-se que os fungos podem gerar compostos úteis, como antibióticos e imunossupressores, em resposta a ambientes estressantes. Portanto, o espaço oferece um ambiente único para explorar a produção de novos compostos que poderiam ter aplicações na medicina e na agricultura.


Aplicações atuais e potencial futuro dos fungos radiotróficos

Proteção radiológica no espaço

Os fungos radiotróficos, como Cladosporium sphaerospermum, demonstraram sua capacidade para atenuar a radiação. Experimentos na Estação Espacial Internacional revelaram que uma camada de apenas 2 mm pode reduzir até 2% a radiação entrante. Estima-se que um revestimento de 21 cm ofereceria uma proteção eficaz contra a radiação marciana, o que poderia revolucionar a segurança em missões espaciais de longa duração.

Cogumelo no espaço exterior

Além disso, investiga-se seu cultivo direto sobre trajes, habitats ou estruturas espaciais, criando escudos biológicos autorreplicantes e sustentáveis.

Novos materiais radioresistentes

A melanina extraída destes fungos está sendo incorporada em materiais convencionais para melhorar sua resistência à radiação. A Universidade Johns Hopkins testou plásticos com melanina na ISS, com aplicações potenciais: desde têxteis espaciais capazes de filtrar a radiação solar e cósmica, até materiais de construção com propriedades protetoras melhoradas.

Também poderia ser utilizada na eletrônica, oferecendo uma blindagem eficaz para componentes sensíveis em contextos de alta radiação.

Biorremediação de zonas contaminadas

Graças à sua capacidade para utilizar a radiação como fonte de energia, estes fungos poderiam desempenhar um papel chave na reabilitação ambiental. Têm o potencial de acelerar a descontaminação de solos e águas, ao mesmo tempo em que concentram elementos radioativos em sua biomassa, facilitando sua coleta e manejo seguro.

Além disso, poderiam funcionar como barreiras vivas, limitando a propagação de contaminantes em ambientes afetados pela radiação.

Biotecnologia e alimentação espacial

Por sua notável resistência à radiação e sua capacidade para gerar biomassa em condições extremas, estes fungos poderiam desempenhar um papel fundamental nos sistemas de suporte vital para missões espaciais.

Atualmente se investiga sua aplicação em biorreatores que não apenas produzam alimentos, mas também ofereçam proteção radiológica.

Aplicações médicas

A melanina fúngica também está sendo estudada no âmbito da medicina nuclear por seu potencial como ferramenta terapêutica e protetora. Explora-se seu uso como base para radioprotetores tópicos destinados a pessoas expostas à radiação em ambientes laborais, assim como para radiossensibilizadores que poderiam potencializar a eficácia de certos tratamentos oncológicos.

Cryptococcus neoformans
Fotografia de uma placa com Cryptococcus neoformans cultivado em ágar

Limitações, riscos e desafios

Apesar de seu potencial, o uso e estudo dos fungos radiotróficos enfrentam importantes limitações. Em primeiro lugar, os mecanismos bioquímicos subjacentes ainda não são completamente compreendidos, o que dificulta seu aproveitamento biotecnológico. Além disso, a maioria dos estudos foi realizada em condições muito específicas (por exemplo, ambientes de alta radiação como Chernobyl ou estações espaciais), o que apresenta desafios para replicar e escalar estes sistemas em outros contextos.

Existem também riscos éticos e de biossegurança, especialmente se se planeja utilizar estes organismos em ambientes sensíveis como o espaço ou instalações nucleares. Requer-se uma avaliação rigorosa para evitar impactos ecológicos não desejados ou a liberação de organismos geneticamente modificados.

Por outro lado, embora tenha sido demonstrado que alguns fungos melanizados sobrevivem e crescem em condições extremas, não está claro se esta adaptação implica uma verdadeira conversão energética útil para aplicações práticas. A eficiência do processo, sua escalabilidade e sua compatibilidade com outros sistemas tecnológicos continuam sendo grandes interrogações.

Definitivamente, o estudo dos fungos radiotróficos está ainda em uma fase exploratória. Embora promissor, seu aproveitamento com fins energéticos, protetores ou construtivos requer mais pesquisa básica e aplicada, assim como uma avaliação crítica dos riscos e limitações envolvidas.

À medida que compreendemos melhor os mecanismos dos fungos radiotróficos, poderíamos estar diante de um novo paradigma biotecnológico que integre o vivo com a proteção frente a um dos fatores mais hostis do universo: a radiação.

Referências

  • https://en.wikipedia.org/wiki/Radiotrophic_fungus
  • https://www.sciencenews.org/article/dark-power-pigment-seems-put-radiation-good-use
  • https://phys.org/news/2020-07-chernobyl-fungi-shield-astronauts.html
  • https://mann.usc.edu/news/rocket-carries-chernobyl-fungi-to-the-international-space-station
  • https://issnationallab.org/upward/pushing-research-to-new-heights-innovative-research-at-the-iss-rd-conference
  • https://futuroprossimo.it/2020/07/la-muffa-del-reattore-di-chernobyl-testata-come-scudo-sulla-iss/
  • https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0000457
- Categorias: Notícias